Alfabetização_discussão sobre os métodos

16-04-2011 00:57

 Sobre o "vovô viu a uva"


Na qualidade de professor e pesquisador universitário, há décadas envolvido com a questão do processo de alfabetização escolar (...) penso que o assunto não pode ser colocado como um conflito entre os defensores do método fônico versus os defensores das concepções construtivistas. A questão é muito mais ampla e profunda, com implicações de natureza ideológica, política, social, econômica e, principalmente, educacional.

 

O desafio que efetivamente se coloca aos educadores é alfabetizar na perspectiva do letramento

Nesse sentido, apresento, resumidamente, alguns pontos, com o intuito de enriquecer o debate.


1) O processo tradicional de alfabetização escolar, que tem como ícone as tradicionais cartilhas, concebe a linguagem escrita como um mero sistema gráfico de representação da linguagem oral. Daí a idéia do ler e do escrever como atos de codificação e decodificação.

Tal proposta começou a ser questionada a partir da segunda metade do século passado, período em que se inicia um crescente processo de profundas mudanças sociais e econômicas - principalmente nas relações de trabalho, começando a exigir de todos os cidadãos (e não só das classes cultural e economicamente dominantes) uma relação mais funcional com a escrita.

2) Simultaneamente, inúmeros trabalhos em diversas áreas do conhecimento têm demonstrado que o domínio do código escrito não implica um envolvimento do indivíduo com as práticas sociais de leitura e escrita, isto é, dominar o código não garante que o aluno se torne leitor ou produtor de textos. Daí o conceito de analfabeto funcional - ou seja, o cidadão é capaz de realizar a decodificação, mas não se envolve com as práticas sociais de leitura e escrita - proposto pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura).

3) A partir de 1985, chega ao Brasil a teoria construtivista, rapidamente assumida como a solução para o problema da alfabetização e interpretada, enganosamente, como um método pedagógico. Obviamente, o construtivismo, como uma teoria psicológica, contribui, mas não responde a todas as implicações do processo de alfabetização escolar, teoricamente multideterminado.

4) As concepções atuais de alfabetização se baseiam na idéia de que a escrita é um sistema simbólico, desenvolvido pela cultura, de natureza histórica e social. Sua essência, portanto, centra-se nas representações / significados / sentidos que os indivíduos atribuem a partir do código. Daí a idéia de que ler e escrever são processos de produção de significados, o que, obviamente, não exclui a importância do domínio do código, mas o coloca atrelado ao significado.

5) Assim, não é mais possível pensar na alfabetização escolar somente como um processo de apropriação do código, uma vez que a sua essência se relaciona com o seu significado. Além disso, deve-se lembrar que a escrita é um sistema caracterizado pelos seus usos sociais, o que garante a sua funcionalidade. Isso possibilitou o reconhecimento, em nosso meio, do conceito de letramento, relacionado com as práticas sociais de leitura e escrita.

6) Nessa perspectiva, um dos grandes objetivos da escola deve ser ampliar ao máximo os níveis de letramento dos alunos, ou seja, possibilitar a eles o envolvimento com as práticas de leitura e escrita durante toda a vida escolar, visando à sua ampla inserção social como cidadãos.

7) A alfabetização, por sua vez, é um processo restrito às séries iniciais, que deve garantir ao aluno a apropriação das dimensões alfabética e ortográfica da escrita, o que inclui as relações grafema-fonema, consciência fonológica e fonética, convenções ortográficas etc. No entanto, deve ser desenvolvida a partir da escrita socialmente funcional, que tem no texto a sua principal forma de expressão.
8) Ao nosso ver, essas são as razões pelas quais a volta do "vovô viu a uva" representa um retrocesso inaceitável. O desafio que efetivamente se coloca aos educadores é alfabetizar na perspectiva do letramento, na qual o aluno, desde o início de sua escolarização, tenha contato com a escrita verdadeira - a escrita que corresponde aos usos sociais de sua cultura. Queremos que nossos alunos se constituam como leitores e produtores de textos e, simultaneamente, se apropriem da escrita ortográfica.

Uma última palavra (ou desafio): todo o processo de alfabetizar letrando pode ser desenvolvido numa perspectiva de conscientização dos indivíduos - transformação da consciência ingênua em consciência crítica - o sonho do nosso saudoso e eterno mestre Paulo Freire. Essa pode ser a alternativa efetiva para os educadores alfabetizadores comprometidos com a formação de cidadãos críticos e de uma sociedade mais justa.


Sérgio Antônio da Silva Leite, 59, doutor em psicologia pela USP, professor da Faculdade de Educação da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), é membro do grupo de pesquisa Alle (Alfabetização, Leitura e Escrita).